terça-feira, 7 de julho de 2009

Nos rastros de Estamira



"A Minha missão, além de ser a Estamira, é mostrar a verdade e capturar a mentira (...) Você é comum. Eu não sou comum. (...) Eu sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim, sem a Estamira".

O documentário nasce do encontro entre o fotógrafo Marcos Prado e a catadora de lixo (?!) Estamira, em 2.000, no Lixão do Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, que ele fotografava há 6 anos. Quando ele pediu para fotografá-la, ela aceitou chamando-o para conversar, em que lhe teria dito que tinha uma missão: revelar "a verdade" e que: "Sua missão é revelar a minha missão".
Deste modo, Estamira, através das lentes de Marcos Prado, que a acompanhou durante 4 anos, enuncia que para “as coisas terem jeito”, a única solução é a destruição de tudo e uma reconstrução do zero. E dá sua contribuição a este projeto: “se tiver que me queimar para as pessoas terem lucidez, tudo bem”.
Em um misto de raiva e doçura, Estamira nos convoca, nos provoca, nos perturba, colocando em análise diversas instituições sociais, tais como família, religião, psiquiatria e modos de existência contemporâneos.
O documentário suscita diversas análises: sociológicas, antropológicas, psicanalíticas, psicológicas, entre outras. Mas Estamira vai “além”. “Além dos além”. Filósofa, mulher, guerreira, louca, lúcida e feiticeira, Estamira é várias mulheres em uma. Estamira é uma multidão.
É sobre a experiência do “transbordamento” que ela nos fala, da loucura que não cabe na relação de diagnósticos do CID 10 (Classificação Internacional de Doenças), transbordando filosofia e lucidez em insights geniais como “lixo é resto e descuido”, “economizar as coisas é maravilhoso, pois quem economiza as coisas tem. Quem não tem, sofre.", disse Estamira, sobre o lixo. E ainda: “tudo é abstrato, até Estamira”, “na escola não se aprende e, sim, se copia” e “tudo que é imaginado existe, é e tem”.
Seu discurso enfático tem dimensões éticas, estéticas e políticas, beira ao insuportável que existe em nós e que teima em resistir. Por isso incomoda tanto assistir Estamira. Nem todos querem ou suportam ouvir o seu discurso, assim como nem todos suportam a convivência com o ambiente putrefato do Jardim Gramacho. "Tem gente que não se agüenta com ele [o lixão]".
É essa mulher que etiquetamos como "louca", rechaçando-a e fugindo dela como o diabo foge da cruz, que denuncia nossos desejos de manicômios.
Precisamos dela para sair da relação espaço-temporal comum que nos confina no mesmo.
Envolvidos em sua trama-drama, tornamo-nos cúmplices: “Não tem nenhum ingênuo aqui”, afirma.
Seus delírios são trans-individuais. Segundo Deleuze um delírio não é apenas um drama teatral ou psicológico. Nossas crenças também são delírios, mas que tiveram sucesso e ganharam credibilidade por serem compartilhados pela maioria. Quando se dá voz ao delírio, ou quando se consideram efetivas as vozes da loucura, do louco, outros encontros são possíveis:

“(...) é que o delírio, que é muito ligado ao desejo, desejar é delirar, de certa forma, mas se olhar um delírio, qualquer que seja ele, se olhar de perto, se ouvir o delírio que for, não tem nada a ver com o que a psicanálise reteve dele, ou seja, não se delira sobre seu pai e sua mãe, delira-se sobre algo bem diferente, é aí que está o segredo do delírio, delira-se sobre o mundo inteiro, delira-se sobre a história, a geografia, as tribos, os desertos, os povos (…) O delírio é geográfico-político. E a psicanálise reduz isso a determinações familiares. Posso dizer, sinto isso, mesmo depois de tantos anos, depois de O anti-Édipo, digo: a psicanálise nunca entendeu nada do fenômeno do delírio. Delira-se o mundo, e não sua pequena família. Por isso que… Tudo isso se mistura. Eu dizia: a literatura não é um caso privado de alguém, é a mesma coisa, o delírio não é sobre o pai e a mãe (O Abecedário de Gilles Deleuze, 1988).

O seu discurso delirante, não pode ser resumido a um discurso de um doente. Como afirma o filósofo Luiz Fuganti "Que potência filosófica ela tem, de criar conceitos e definir modos de pensar"(...) "não é o discurso de uma paranóica, não é classificável pela psiquiatria, não cabe em sistemas". O psicanalista Contardo Calligaris, colunista da Folha de São Paulo, observou no mesmo debate que Estamira construiu "uma cosmologia e uma cartografia" próprias.
Estamira tem o peso do documental nas costas. Peso da experiência de vida marcada por prostituição, estupro, pela “passagem” no aterro psiquiátrico, entre outros que Prado vai nos apresentando sua história de vida após os 20 minutos iniciais, nos quais o espectador/ cúmplice tem contato com o pensamento de Estamira.
Em ataques de fúria, Estamira, vomita suas análises numa retórica irada e alucinante, afirmando sua loucura como uma possibilidade de significar o mundo.
É pelo controle remoto que toda e qualquer conexão se resolve, explica. Está plugada no mundo, na sociedade, em nós, em nossos nós.
Sua grande revolta é contra Deus e a religião. Declara guerra a Deus que muitos anseiam declarar, mas não têm coragem. Mira Deus "estrupador". Posiciona-se contra um Jesus Cristo que é o "trocadilo" em pessoa, contra a quadrilha de médicos "dopantes" "copiadores" que a tentam deter, contra "espertos ao contrário", contra o próprio filho rezador: "alguém larga de morrer por rezar tanto?".
Estamira indigna-se contra quem não cuidou do mundo, que permite que tudo esteja ao contrário, o “poderoso ao contrário”. Se há tantos erros, há Deus? Para ela, não.
Conclui sua missão terrorista poética e nos coloca frente à frente com tudo aquilo que julgamos restos, dejetos e inutilidades e que se tornam invisíveis no nosso cotidiano.
Um brinde ao terrorista-em-nós!


TEXTO BASE PARA O DEBATE SOBRE “ESTAMIRA”, realizado na FSBA, em 2008.
“Estamira”: Brasil, 2005, 121 min. Direção: Marcos Prado
Professora Luana da Silveira

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